Dois de Paus!

O Conto “Dois de Paus”, escrito por Gervásio Santana, é uma história de ficção, escrito no verão de 2015 especialmente para o I Concurso Literário de Canoas, e foi um dos Contos Premiados, selecionados para compor o livro Canoas Contando Histórias, publicado em parceria pela UnilaSalle e Secretaria de Cultura da Prefeitura Municipal de Canoas / RS e lançado na 31ª Feira do Livro de Canoas, junho de 2015. A capa mostra uma senhora pensativa, olhando para o horizonte, imersa em reminiscências (inspirada no Conto Dois de Paus?) e o avião da Praça Central, símbolo da cidade.

Dois de Paus!

Celestina chegou bem antes do horário marcado, porque, sendo o atendimento por ordem de chegada, logo estaria liberada. Ledo engano. Ela já tinha folheado todas as revistas da sala de espera, já tinha tomado água no bebedouro, já tinha ido ao banheiro, já tinha conversado com outros pacientes, e nada do cardiologista chegar.

Sempre que ela precisava esperar como um dois de paus, passava mal. Sentia a respiração pesada e precisava se abanar para se recompor. Se soubesse que o médico ia demorar tanto, teria trazido a agulha e a linha de crochê para continuar a fazer os guardanapos encomendados por Vivian, ou quem sabe teria trazido para ler o livro que comprou na Feira do Livro de Canoas, dias antes.

Do alto dos seus 64 anos ela já se conhecia: quando sentiu as palmas das mãos suarem e o estômago embrulhado, levantou-se e foi até o balcão, mas a atendente continuava navegando na mesma página azul que sua afilhada, a Rinary, tanto mexia. Passou-se um tempo. Esta pateta não serve para trabalhar aqui, pensou ela. Um tempo longo. E ela ali, como estátua na frente do balcão, novamente como um dois de paus… Então, escolhendo as palavras, tascou: a senhorita pode dar uma pausa no Facebook e me dizer se o médico ainda vai demorar?

Desconcertada, a moça respondeu: a informação que temos ainda é a mesma das outras três vezes que a senhora me perguntou: o médico telefonou avisando que está atendendo a uma emergência e virá tão logo possível. Desta vez acrescentou: a senhora foi a primeira a chegar, será a primeira a ser atendida!

Com cara amarrada, virou-se e notou, por trás de uma persiana vertical, uma enorme janela com a parede inteiramente feita de vidro. E isto a fez lembrar de quando nasceu Olívio, o primeiro filho: para proteger o bebê do frio, seu esposo Francisco teve que pedir dinheiro emprestado para colocar vidro nas janelas, visto que o inverno se aproximava. Chegou pertinho da vidraça e apreciou a cena: no primeiro plano Canoas com suas nuances, relevo, seus bairros, casas e prédios, a Refinaria, depois Esteio e, ao fundo, Sapucaia do Sul e São Leopoldo… Lá embaixo as pessoas e os carros pareciam minúsculas formigas no seu frenesi diário para cumprir disciplinadamente suas tarefas! Qual andar ela estava? Décimo terceiro?

Olhou o traçado do Trensurb, por onde uma composição se deslocava suavemente nos trilhos. E também suavemente, viu num lampejo de sua memória a antiga estação da Viação Férrea, bem como a si própria e ao esposo Francisco no dia em que chegaram do interior. Chico trabalhava na Olaria da Linha Brasil e ganhava pouco mais que nada. Sonhava com novas oportunidades e melhores condições de vida. Contrariando todos os parentes, pediu as contas e marcou data para a mudança. Sua mãe e seus e irmãos rogaram até o último momento para que desistissem daquela empreitada maluca. Ela também era contra, mas, fazer o quê?, embora casada há apenas dois anos, tinha que acompanhar o marido…

No dia da despedida, tentou ser forte, mas quando ela viu o pai que tanto amava fungar, se engolir todo e sair apressado para chorar nos fundos da casa, não se aguentou e liberou o turbilhão de emoções, derramando lágrimas de medo e pavor pelo que encontraria no desconhecido. Munidos com um saco, dentro do qual estavam as roupas e todos os seus pertences, pegaram o trem na estação do Bexiga. Durante a viagem, Celestina viu pessoas, conversou e até distraiu-se um pouco, mas a cada novo “tlec-te-tec-tec” das rodas, tinha consciência de que mais distante estava do seu pequeno paraíso.

Quando Chico lhe disse que a próxima estação era o entroncamento de Canoas, sentiu um frio na espinha. Deus do céu! Bem ao contrário da vida calma e tranquila do interior, em breve desceriam na “boca do tigre”, onde, segundo sua mãe, as pessoas eram frias, sem sentimento e ninguém respeitava ninguém. Além disso, seu pai os advertira severamente para que tomassem cuidado com os punguistas, os quais tinham mãos invisíveis e compridas que atacavam quando ninguém percebia… Pendurou-se em Chico e desceu do trem, espiando desconfiada para a multidão da plataforma: homens, mulheres e crianças, alguns bem vestidos, outros nem tanto; cada qual com a sua pressa, com o seu destino, com os seus afazeres.

Seguiram a pé. Ela olhando a toda hora para trás e podendo jurar, por pelo menos três vezes, que estavam sendo seguidos por um punguista de mãos ágeis e reluzentes. Francisco pediu algumas informações e, juntos, conheceram as ruas empoeirentas do bairro Mathias Velho, bem como o casebre do tio Loreno, que fora quem tinha “desencabeçado” o Chico a mudar-se para a Canoas, cidade próspera que oferecia bastantes empregos e ótimos salários.

Enquanto no horizonte um avião da Base Aérea de Canoas fazia a volta provavelmente sobre São Leopoldo, continuou suas reminiscências. O tio Loreno ficou muito surpreso no dia em que chegamos de Candelária: ele jamais acreditava que tivéssemos coragem para vir (a coragem na verdade era de Chico!). Mas a maior surpresa foi minha: não havia lugar para pousarmos dentro de casa. O chão da sala e da cozinha já era ocupado à noite pelos meninos, inclusive um deles, Robson, o mais novo, dormia debaixo da mesa. Não se preocupem, vamos dar um jeito nisso, disse tio Loreno. E enquanto a tia Margarida abria um frango, pego no quintal depois que chegamos, ele e os primos fizeram o despejo das galinhas que já estavam empoleiradas, limparam o galinheiro e foi ali que dormimos a primeira noite em Canoas. Ou melhor, o Chico dormiu, eu não, eu fiquei quietinha como um dois de paus e chorei a noite inteira!

Aqueles foram tempos duros, especialmente pela saudade de casa e dos familiares. Enquanto hoje a afilhada Rinary, através da internet, sabe notícias na hora que bem deseja das amigas que estão no outro lado do mundo, naquela época uma carta demorava um mês para ir e pelo menos outro tanto para voltar. O Chico conseguiu trabalho, reformou o galinheiro, dando a ele um aspecto, digamos, mais habitável e, fazendo todos os serões possíveis, tornou-se praticamente uma visita em casa. Com isso, nos despedimos do galinheiro do tio Loreno: compramos um terreno a prestação, construímos uma meia água de madeira e até uma patente. Quando estávamos nos instalando neste local nasceu Olívio, e, um ano depois, Renato.

Olhando a BR-116, movimentada como sempre, lembrou que por ela Francisco “voava as tranças” numa velha bicicleta comprada de segunda mão. No dia do aniversário de cinco anos de Olívio e véspera do aniversário de quatro anos de Renato, Chico tinha prometido chegar cedo, mas falhou com a promessa. E já era noitinha quando a trágica notícia irrompeu: ele tinha sido atropelado por um caminhão e estava gravemente ferido.

Corri para o hospital levando junto os três filhos (Glória tinha dois anos) e lá encontrei Francisco com diversas quebraduras, ligado a aparelhos, com o rosto vermelho, inchado e bastante arranhado. Ele demonstrou alegria quando me viu com as crianças e, pausadamente, disse que tinha conseguido comprar um presente de aniversário para Olívio e para Renato. Inocentemente, com os olhos brilhando e sem entender a real gravidade da situação do pai, os meninos quiseram saber onde estava aquele que seria o seu primeiro presente de aniversário. Mexendo apenas o indicador da mão direita, Francisco apontou para uma mesinha ao lado, onde havia uma sacola de matéria. Dentro dela uma perna de salame colonial, dois embrulhos de papel pardo contendo um carrinho de madeira para cada menino e uma pequena boneca de pano, para Glória. Com a voz trêmula, só conseguiu dizer: feliz aniversário, filhos.

Chegando a casa, Celestina bem que tentou cantar o “parabéns a você” para os meninos, mas engasgou no verso “nesta data querida” como se milhares de mãos de aço estivessem esmagando sua garganta. As crianças cantaram alegremente até o fim, inclusive com o “é big…”, sem perceber que na verdade não havia clima algum para comemoração. Ao final, a pequena Glória, atropelando as palavras, perguntou: Mãe, como o pai sabia que eu queria “esta” boneca? Disfarçando as lágrimas, disse qualquer coisa e serviu as crianças, as quais, sem se desgrudarem dos presentes, se regalaram comendo o salame trazido pelo pai, a cuca recheada que ela tinha feito durante a tarde e tomando chá de capim cidró.

No dia seguinte, esperançosa, retornei ao hospital. Chico estava pior. Num lampejo de lucidez, esboçou o que parecia ser um sorriso e disse, com dificuldade: recebi um aviso em sonho… Seja forte e cuide bem das crianças… – fazia pausas entre uma fala e outra. – Não volte para o interior!… Por que está me dizendo isto? Logo vai estar em casa e se recuperar. – E ele apertou a minha mão, fez mais um esforço e disse: viemos de longe… Esta cidade nos acolheu… – as pausas eram maiores agora… – Não quero que dê passos para trás… Você me promete…  – apertou mais forte a minha mão. – que vai ficar em Canoas… e que vai… cuidar … de nossos filhos? … Promete? – Balancei afirmativamente a cabeça.

Compreendendo a resposta, Francisco olhou fixamente para mim e sorriu. A seguir, o rosto caiu levemente para o lado e seus olhos ficaram fitando o vazio. Fiquei sem chão quando dos aparelhos saiu um som diferente, atraindo a atenção das enfermeiras, que correram para acudir, me empurrando e pedindo para eu esperar do lado de fora, onde fiquei como um dois de paus, aguardando por um tempo que mais parecia uma eternidade. Então veio a confirmação fatídica: meu marido, meu porto seguro, meu tudo, estava morto. Com lágrimas nos olhos e soluçando inconsoladamente, só me lembrava: e agora, o que vai ser de mim?

O policial que atendeu a ocorrência esteve no velório. O motorista do caminhão tinha relatado que o ciclista conduzia a bicicleta com uma só mão e segurava uma sacola na outra. Foi quando uma pedra ou um buraco o fez desequilibrar-se, rodando e caindo no exato instante, sem chance de desviar, em que o caminhão vinha passando. Ele carregava o presente dos meninos, pensou Celestina. O primeiro presente de aniversário. Vindo do pai, também o último.

Enquanto a recepcionista se refestelava ao telefone, ela continuava a olhar pela vidraça. Embora fazendo faxinas, a situação era extremamente difícil. Teve um dia que os mantimentos acabaram e ela desesperou-se: o que faria de almoço? Com um resto de farinha de trigo ela inventou um creme misturado com algumas folhas de espinafre, refeição que as crianças acharam estranha, mas comeram mesmo assim.

No final daquele mesmo dia o rapaz do mercado veio em minha casa entregar uma sacola de compras com alguns gêneros de primeira necessidade. A entrega está errada, – disse a ele – não fui eu quem fez estas compras. Ué, a senhora não é Dona Celestina? Sim, sou. Pronto, a entrega é aqui mesmo. Mas quem mandou entregar? Não sei, Dona. Só estou fazendo o meu serviço. Dali para frente, obrigado, meu Deus!, sempre que a despensa esvaziava ou chegava próximo de esvaziar, uma sacola misteriosa e salvadora chegava ao final da tarde. Mas ela só foi descobrir muito tempo depois, e ainda por acaso, por intermédio de terceiros, que seus benfeitores eram o tio Loreno e tia Margarida.

Olhando pela vidraça para o lado esquerdo, avistou o rio dos Sinos. E lembrou-se de sua vó Ciça, que sempre dizia que o que está ruim ainda podia piorar. Numa tarde de calor tórrido, ela recebeu uma das mais terríveis notícias que uma mãe pode receber: os meninos, que tinham treze e doze anos, tinham se afogado. Eles haviam resolvido atravessar a prainha do Paquetá a nado e Renato teve um mal súbito no meio da travessia. Olívio tentou socorrê-lo e a água engoliu os dois, sem dó nem piedade.

Celestina abalou-se com a perda dos dois filhos, mas precisou logo dar a volta por cima para dar forças para a filha Glória, na altura com 10 anos, que era muito apegada com os irmãos e passou a viver alheia a tudo, remoendo lembranças, num mundo de faz de conta. A pequena, que já comia pouco, passou a comer menos ainda ou a dispensar o alimento, não obstante ter sido levada em diversos médicos, psicólogos e psiquiatras e ter tomado uma enorme lista de remédios. Descoberta uma anemia profunda na menina, até um xarope feito com pregos enferrujados, vinho e uma série de outros ingredientes foi dado a ela. Sem sucesso.

A filha, que definhava dia a dia, caiu de cama e foi hospitalizada. Era grave. Muito grave. Na noite de 24 de dezembro, ainda no hospital, Glória me relatou que tinha recebido uma visita. Que visita?, perguntei. Olívio e Renato vieram junto com um senhor que eles disseram ser nosso pai. Apavorada, desconversei, mas ela insistiu: mãe, o pai e os manos estão bem, eles disseram que amam a senhora e dizem que um dia vamos nos reencontrar. Que noite tensa aquela! No amanhecer do dia seguinte, enquanto as luzes de Natal piscavam incessantemente, a vela de Glória se apagou. Findou dormindo, partiu como se fosse um anjo.

Celestina nunca mais quis saber de casar ou de ter outros filhos. Visitou os pais e parentes muitas vezes no interior, ajudou todos quantos pôde a vir morar e prosperar em Canoas e dedicou-se ao trabalho voluntário em todas as frentes em que pôde atuar. Olhando para trás, hoje ela sabia que, ao contrário das advertências negativas que tinha recebido de seus pais, os canoenses que ela conhecera, em sua maioria eram honestos, hospitaleiros, honrados e atenciosos para com as pessoas. Cumprindo com o voto feito ao esposo, nunca se mudou.

Olhando a metrópole que se desenhava pela vidraça, sentiu um enjoo estranho e um calorão que parecia que vinha de dentro. Ao longe, pássaros voavam enquanto um zumbido lhe invadiu a cabeça, um som diferente, talvez angelical. Vertigem fugidia? O rio dos Sinos, os bairros, a Guilherme Shell, o burburinho do centro, a BR-116, as casas, os edifícios, os carros, as pessoas, tudo parecia tão perto e tão longe ao mesmo tempo. Equidistante.

Os pássaros voavam agora mais perto da vidraça. O coração batia acelerado, parecia que iria saltar pela boca. Senhora, a senhora está bem? Reconheceu a voz. Será que a pateta não estava vendo que ela estava bem, que aquele calorão gostoso estava lhe dando um prazer maravilhoso nunca antes experimentado? Uma grande claridade tornou tudo em um branco resplandecente, mas ela ainda enxergava Canoas, Esteio e inclusive a silhueta do morro de Sapucaia ao longe. Como seria isto possível?

Então Celestina viu os quatro pássaros romperem a vidraça como se o vidro não existisse. Uma sensação indescritível invadiu-lhe por completo o ser quando percebeu neles asas enormes e alvas como a neve e viu neles sorrisos com uma beleza que ela nunca tinha visto em nenhuma pessoa. Finalmente seus sentidos completaram a cena como quem encaixa a última peça num quebra-cabeças: ali estavam Francisco, Olívio, Renato e Glória.

Não disse que um dia a gente ia se reencontrar? – sussurrou Glória. A espera havia terminado. Celestina nunca mais precisaria ficar plantada como um dois de paus.

FIM