O Comentarista

Estava quase na hora do comentário do jornalista que Maria Luiza gostava, o cara era conceituadíssimo na emissora de televisão. A TV já estava ligada, no canal das notícias e Maria Luiza esperava, aprontando o almoço. Maria Luiza achava legal os pontos de vista dele, sempre bem ponderados, era como se ele dissesse aquilo que Maria Luiza tinha vontade de falar…

Nos últimos dias, diversas catástrofes naturais tinham atingido o mundo (*). E até o Brasil, que antes era um refúgio de paz, agora também sofria com tal mal… O desmoronamento trágico em Angra dos Reis, a enchente súbita do rio Jacuí que levou embora o vão de concreto da ponte que liga Agudo a Restinga Seca (*). Aliás, pensava Maria Luiza, a Restinga não devia estar “seca” e sim deveria estar mais era para alagada ultimamente, visto a chuvarada dos últimos tempos… Restinga Alagada, esta foi boa, pensava Maria Luiza! Seu avô, se estivesse vivo, ia gostar deste trocadilho…

Maria Luiza era pessoa informada, sabia pela TV que, no estrangeiro, ocorria uma nevasca como há muito tempo não se via… O frio e a neve castigava o Velho Mundo, matando também inúmeras pessoas… Mas, cruz, credo!, nada que se comparasse com o Haiti… Maria Luiza já tinha chorado só em ver as cenas do terremoto na TV (*) e se arrepiava quando lembrava de como deviam estar sofrendo por lá… Quanto entulho por metro quadrado… Quantas mortes ocorreram de repente… Maria Luiza nunca tinha saído da sua região, quanto mais viajar por outros Estados, ou outros países, mas sabia pela TV que o Haiti era uma ilha perto de Cuba onde Fidel Castro era o manda-chuva…

Como o almoço já estava pronto, Maria Luiza desligou as bocas do fogão e esperou um pouquinho antes de almoçar. Já estava quase na hora do comentário do jornalista que Maria Luiza gostava de ouvir e ela queria ouvir com atenção. O comentário iniciou… mas, espere… O comentarista iniciou sua fala criticando o presidente pela quantia em dinheiro que o Brasil enviou ao Haiti? Ela ouvira bem? Apurou os ouvidos: o jornalista apontava problemas aqui no Brasil, como por exemplo, educação, saúde e segurança, que mereceriam este dinheiro muito mais do que o Haiti… Opa, agora ele fala de Caetano Veloso… O que tem a ver música com o terremoto?

Tá certo que temos problemas aqui no Brasil, Maria Luiza não era besta, mas ela percebia a urgência, a emergência no atendimento das vítimas do Haiti… Maria Luiza tinha sentimentos… Isso não era preciso faculdade de jornalismo para saber… Maria Luiza não era pessoa estudada, ganhava a vida com o dinheiro honesto que conseguia fazendo faxinas… Maria Luiza não conseguia mensurar o que poderia ser possível comprar com a quantia que o presidente doou ao Haiti, mas sabia muito bem o que fazer com cinquenta reais, quantia que ela ganhava num dia de trabalho… Tinha alguns meses que era difícil pagar todas as contas, mas Maria Luiza sempre fez das tripas coração para vencer honestamente seus compromissos… E nunca precisou passar a perna em quer que fosse para pagar as contas e ter um nome limpo…

Maria Luiza sabia o quanto era dolorido perder alguém numa tragédia… E sabia que a dor da perda é maior quando a morte é súbita e inesperada… Ela tinha perdido recentemente num acidente de carro uma amiga com a qual ia em bailes de vez em quando para dançarem e se divertirem… Imagine perder assim de repente quase uma cidade inteira… Sim, uma cidade inteira, visto que, no interior, de onde viera, pelo que ouvia falar na secretaria de assistência social, não tinha mais do que dez mil habitantes… Agora imagine morrer assim, numa tacada só, 40 mil, 50 mil, ou, “deusulivre”, de 100 a 200 mil pessoas como ela viu falando na TV…

O comentário terminou… Agora estava passando os comerciais. Mas a consciência de Maria Luiza estava fixa no que recém tinha ouvido… E seu coração dizia que estúpido estava sendo o comentarista… Quanta desumanidade… Maria Luiza agora percebia que o comentarista não era tudo aquilo que ela pensava dele… O comentarista não tinha coração, ele desceu no conceito dela… Maria Luiza sim tinha coração, e ela decidiu que, após o almoço, também faria alguma coisa… Ia procurar, naquela mesma tarde, saber como poderia ajudar as vítimas do Haiti de alguma maneira, talvez fazer uma doação, mesmo pequenina…

Crônica escrita por Gervásio Santana de Freitas

(*) Em tempo: os fatos aqui descritos foram assistidos na TV por Maria Luiza no início do ano de 2010. No réveillon de 2010, 53 pessoas morreram vítimas de deslizamento de terra em várias regiões de Angra do Reis, no Sul Fluminense. A registrar também fortes nevascas na Europa. A ponte citada nesta crônica tombou na manhã de 5 de janeiro de 2010, arrastando consigo cerca de 20 pessoas. Este acontecimento ocorreu em um trecho de pelo menos 100 metros, sobre o rio Jacuí, na RS-287, na divisa entre os municípios gaúchos de Agudo e Restinga Seca. Já o terremoto citado, ocorreu na madrugada de 12 de janeiro de 2010, foi devastador e atingiu o Haiti, matando pelo menos 250 mil pessoas e deixando mais de um milhão de desabrigados

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