Maria Luiza estava levando a medrosa Dona Honorina na rodoviária de Porto Alegre. Não bastasse o medo da outra pela escada rolante… não bastasse o fato do único filho dela ter morrido afogado e estar sendo velado no interior… agora mais ainda um pé machucado? Caramba… É muita desgraça de uma vez só para uma pobre senhora idosa…
“O pé está doendo, acho que torci”, disse Dona Honorina, enquanto Maria Luiza pegava a sacola de viagem da amiga com uma mão e, com a outra, a acudia. “Venha, vamos sentar um pouco”. Iniciativa era o que não faltava à Maria Luiza: colocou Dona Honorina sentada num banco, tirou o calçado da outra, acocorou-se e, prontamente, fez uma massagem leve no pé que estava dolorido, com vistas a amenizar o desconforto. Passados alguns instantes, Dona Honorina já dava sinais de que se sentia melhor (especialmente porque a escada rolante já tinha ficado para trás) e disse: “já está melhor, minha filha! Esse pé não vai me impedir de ir enterrar o meu filho!”
Quando o trem apontou ao longe e ambas levantaram-se, Maria Luiza percebeu que a amiga mancava um pouco e ficou ao seu lado para o caso de haver algum desequilíbrio ou queda. Maria Luiza pensou que só estava faltando Dona Honorina trancar o outro pé no vão e ficar com os dois pés lesionados… Para evitar qualquer chance disso ocorrer, disse: “Cuidado com o buraco entre a plataforma e o trem, dê um passo largo”.
Embora Dona Honorina estivesse abalada com a morte do filho, a viagem (e seus medos) estava cumprindo um papel importante no sentido de não deixar a outra pensando só na notícia trágica que tinha recebido do interior do estado… O trajeto até Porto Alegre transcorreu sem maiores incidentes.
Uma vez na estação metrô Rodoviária, Dona Honorina sorriu ao saber que a escada tradicional estava livre e que não seria preciso embarcar outra vez na “terrível e famigerada” escada rolante… O hall e a escadaria da estação foram rapidamente vencidos pelas duas. Na rua, Maria Luiza teve de ajudar a outra a driblar diversos camelôs que tentavam vender de tudo um pouco: pentes, isqueiros, agulhas, enfeites, adesivos, relógios, eletrônicos, roupas, bonés, camisetas…
Conseguiram finalmente sobreviver às abordagens. Maria Luiza levou a amiga até o guichê de venda de passagens da rodoviária. Pronto, pensou Maria Luiza, sua boa ação estava quase cumprida, agora era só aguardar Dona Honorina comprar a passagem e depois levá-la até o box de embarque! E, assim, enquanto retornasse para sua cidade, onde planejara fazer uma pequena doação às vítimas do terremoto no Haiti, a outra rumaria para o interior do estado para cumprir uma agenda familiar triste…
Mas qual! Foi ali no guichê que outra e maior surpresa aguardava Maria Luiza: Dona Honorina constatou que não tinha dinheiro suficiente para comprar a passagem de ônibus para seu destino. E agora? Como ela iria ao velório e ao enterro do único filho? O que fazer?
Crônica escrita por Gervásio Santana de Freitas
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