Sensação de Leveza de Espírito

Maria Luiza era mesmo uma mulher de firmes propósitos! Sem receio do que as pessoas pudessem pensar dela, gritava escandalosamente no hall da estação rodoviária: “Espera, espera! Falta um passageiro!” Afinal, ela não queria que Dona Honorina perdesse o ônibus que a levaria ao enterro do único filho…

O motorista, que já tinha conduzido o ônibus alguns metros de marcha a ré com vistas a tirar o ônibus do box para iniciar a viagem, enxergou aquela espalhafatosa gritando e com os braços abanando para cima, correndo na direção do coletivo, então pisou no freio e esperou, reabrindo em seguida a porta.

Com os bofes quase pra fora da boca, Maria Luiza, feito uma estátua, apoiou-se no ônibus, literalmente na intenção de segurá-lo, de impedir que seguisse viagem! O motorista, olhando o relógio, disse: “suba rápido, estamos sobre a hora!”, ao que Maria Luiza, tendo respirado profundamente, explicou: “só um momento, a passageira já vem chegando!”.

Dona Honorina já tinha atinado que sua benfeitora havia corrido para fazer o ônibus esperá-la. Também cansada, arfante, alcançou Maria Luiza e, com os olhos marejados de lágrimas sinceras e com a segurança de que o embarque estava garantido, tascou-lhe um abraço quebra-costelas e um beijo estralado na face, agradecendo imensamente pela ajuda.

Impaciente, o motorista ainda teve de esperar Maria Luiza enfiar a mão na bolsa, procurar e tirar de lá de dentro um papelzinho escrito à mão, uma espécie de cartão de visita que Maria Luiza, diarista que era, sempre tinha para captar novas clientes. Não que estivesse pensando em trabalho, aqui o caso era diferente, porque ela disse: “quando retornar, não esqueça de me telefonar, o número está aí neste papel. Quero saber como foi tudo”.

Dona Honorina agradeceu mais uma vez e então finalmente embarcou no ônibus, para alívio do apressado motorista, que conferiu a passagem o mais rápido que pôde e indicou a poltrona que aquela senhora idosa ocuparia durante a viagem. Porta fechada, o ônibus finalmente completou a manobra de marcha a ré e, deslizando como uma caravela sobre um mar calmo, aos poucos desapareceu rumo ao seu destino.

Maria Luiza ainda demorou-se por algum tempo no hall da estação, em frente ao box, agora vazio, pensando sobre as fortes emoções e até sobre os fiascos que tinha passado naquela tarde. Ela era pessoa humilde, não tinha muita instrução, mas sabia desde pequena da necessidade de ajudar o próximo.

Ela inicialmente tinha planejado fazer uma singela doação em dinheiro às vítimas do terremoto do Haiti, mas quando encontrou aquela senhora idosa chorando baixinho na lotação, logo percebeu que o próximo a ser ajudado invariavelmente está muito mais perto do que podemos supor com nossas vãs filosofias…

Só que agora ela tinha um problema mais imediato: a quantia que ela tencionava doar na Cruz Vermelha era menor do que ela gastou para completar a passagem de Dona Honorina… Resumindo, Maria Luiza havia gasto mais que o previsto e isto lhe deixaria ainda mais apertada financeiramente, especialmente por estes dias que não havia nenhuma nova faxina programada…

Mas ainda assim, se alguém pudesse ler seu pensamento, saberia que no seu íntimo ela estava muito contente por ter seguido seu coração e por podido ter ajudado Dona Honorina. Repousava nela a sensação do dever cumprido, uma sensação de leveza de espírito. Assim pensando, Maria Luiza agradeceu a Deus a oportunidade de servir e tomou, feliz, o caminho da casa.

Crônica escrita por Gervásio Santana de Freitas

Leia também:
Todas as Crônicas de Maria Luiza

Interação:
Gostou do texto? Tem críticas ou sugestões? Gostaria de ver Maria Luiza em alguma situação específica? Deixe um comentário nesta página ou envie um e-mail para gervasio@texbr.com.